
AUTOR: Roberto Bolaño
ANO DE PUBLICAÇÃO: 2004
ANO DA EDIÇÃO: 2016
EDITORA: Companhia das Letras
PÁGINAS: 856
Então vamos direto ao que se trata 2666, o que por si só já leva um tempo para explicar: o livro é dividido em cinco partes, e cada parte, aparentemente, não tem nada a ver com a outra, mas tem sim. A primeira parte traz uns críticos europeus desesperados para encontrar seu recluso objeto de estudo, o escritor Benno Von Archimboldi, e, durante sua busca, eles vão parar no México e dão de cara com a informação dos crimes de Santa Teresa. A segunda é focada no guia desses malucos, o professor Amalfitano, que está numa bad vibe fodida e fica viajando foda lembrando-se da esposa e preocupando-se com a filha por causa do lugar bizarro que eles moram (Santa Teresa). Na terceira parte, nós acompanhamos Oscar Fate, jornalista político de Nova York, que vai até o México para cobrir uma luta de boxe, mas seu interesse se volta para os crimes contra as mulheres que estão sendo cometidos na cidade. A quarta parte é a dita principal, abordando os tais crimes cometidos na cidade de Santa Teresa, os policiais e as investigações sobre o caso. Na quinta e última parte, conhecemos a vida de Benno Von Archimboldi, da sua infância à passagem pela segunda guerra e depois sua vida reclusa.
Vou começar já apresentando o ponto negativo da obra: esse foi o último trabalho de Bolaño, escrito até ele morrer em 2003, e ainda faltava revisar várias paginas antes de lançá-lo. É certo que a história já estava toda ali, o que faltava era cortar umas palavras e definir um estilo mais forte para a escrita (principalmente para o primeiro capítulo), coisa que ninguém tem dúvidas que Bolaño tinha a capacidade de fazer, é só ler livros como Noturno no Chile, Estrela Distante e Amberes para checar. O problema é que morto não edita, e o livro saiu com esses probleminhas mesmo assim, então há partes que você vê uma certa repetição de palavras desnecessária, alguns advérbios que não deveriam estar lá, entre outros pequenos erros. Todos os capítulos são narrados de forma diferente mesmo assim, então nem chega a doer muito.
Agora vamos lá. A primeira coisa que eu tenho que informar ao aventureiro é que calhamaços de 850 páginas exigem paciência. O livro começa com o capítulo mais fraco em minha opinião, e vai apresentando o cenário aos poucos, focando muito no desenvolvimento dos personagens e suas relações. Mesmo assim ele apresenta pontos positivaços, como o melhor triângulo amoroso que eu já li (e com o melhor final possível) e a relação dos personagens com a literatura representando o mal do século: a nova forma de lidar com o trabalho, onde ficamos obcecados pelo que fazemos a ponto de só falarmos e pensarmos nisso o tempo todo, sempre nos cobrando mais, tudo isso regado a discursos positivistas e fazendo com que você seja seu próprio chefe, gerando todo tipo de doença mental que você imaginar. Para entender mais sobre o que eu estou falando, leiam também um livrinho chamado A Sociedade do Cansaço de Byung-Chul Han.
A segunda e terceira parte já vão preparando o clima para o resto da obra. O bom é que essas três partes só têm cerca de 250 páginas, sendo que o bicho pega mesmo a partir da quarta. Na segunda o tom é totalmente surreal, com Amalfitano contando para nós as travessuras de sua mulher ao longo do resto de sua vida (muito engraçadas e contraditórias, mas com certeza uma personagem inesquecível) e depois começa a refletir sobre um livro de geometria e misturá-lo com filosofia e ainda o pendura no varal baseado numa ideia de Duchamp... Não entendi praticamente nada dessa parte, só fiz passar as páginas, mas é algo que eu ainda pretendo pesquisar depois. A terceira é muito mais tranquila, com o jornalista conhecendo a vida dos mexicanos mais de perto e dando de cara com o primeiro indício do motivo dos crimes, e uma coisa muito legal foi que, mesmo com o personagem aparecendo pela primeira vez para falar com um líder do movimento Panteras Negras (que aliás ensina um prato, pato com laranja ou algo do tipo, vamo marca para fazer qualquer dia), cobrindo movimentos muçulmanos liderados por negros e trabalhando no Harlem, eu só fui me tocar que o personagem era negro quando Bolaño me disse, só que a construção para o fato já estava toda lá.
A quarta parte é famosa pelo fato de ser o principal capítulo (e o maior) e pelas pessoas desistirem da leitura nela, por não aguentarem as descrições e o tom da escrita do Chaves nessa parte. Acontece que é isso que torna o livro genial. Bolaño pega uma situação real, que foi o massacre promovido às mulheres na Ciudad Juarez, aqui representada por Santa Teresa, e denuncia da forma mais dilacerante que só a literatura pode fazer. Acompanhem o conceito: quando você vê um número grande de mortos numa notícia ou reportagem, você pode até sentir uma dor, mas o mascaramento feito pelo número não faz com que você se importe tanto quanto o assassinato feito a apenas uma pessoa. Então Bolaño pega cada um desses números e mostra individualmente o que aconteceu com aquela garota, como ela chegou ali, o que fizeram com o corpo dela, quem está sofrendo com a perda e quem pode ser o culpado. Mas tudo com a frieza de um relatório policial, de forma que a garota não deixa de ser apenas um número. Aqui é também o principal ponto de reflexão sobre o mal na sociedade. Porque os assassinatos não são feitos por uma só pessoa, e grande parte dos caras pegos pela polícia são os namorados ou maridos das mulheres, e a interpretação de vários críticos é que Bolaño mostra que o sistema é o verdadeiro mal, e ele se mostra insolúvel diante dessa situação, pois não existem policiais o suficiente para vigiar cada esquina e cada estabelecimento. Acontece que eu vejo um fator extra nesse caso: o sistema é inquestionável, mas a cultura do lugar também tem papel fundamental nesse massacre invisível, pelos homens matarem as mulheres apenas por ciúmes e muitas delas serem trabalhadoras das fábricas maquiadoras (é o nome que se dá às fábricas da fronteira) roubando o “espaço” dos homens, e meio que me espanta nenhum crítico falar disso.
A quinta parte é a minha preferida e também fala sobre a violência, dessa vez num local mais localizado, a Segunda Guerra Mundial, e muito também sobre literatura (esses acabam sendo os temas do livro todo). Archimboldi teve uma vida muito louca e sua presença na segunda guerra é essencial para marcar a sua personalidade e seu enclausuramento com o mundo, fora sua esposa que é uma garota completamente doida e maravilhosa, sofrendo de uma doença mental e mesmo assim parecendo mais viva e lúcida do que todos os personagens. Essa parte fala muito sobre o poder da literatura e sobre o mundo literário em si, e uma das coisas mais legais é acompanhar o início da carreira de Archimboldi e a sinopse de seus livros, particularmente um, chamado A Cega, que trata de uma cega que não sabia que era cega e de uns detetives videntes que não sabiam que eram videntes. Eu simplesmente quis ler esse romance assim que li essa sinopse.
Mais algumas considerações sobre a obra: ela é repleta de contos dentro dela mesma, em que personagens aparecem e contam histórias, coisa que Bolaño costuma fazer em seus livros, para ilustrar uma situação ou desenvolver os personagens, de modo que existem pelo menos mais 30 histórias além das cinco principais. Além de ser um livro de contos, vale dizer que o gênero também é realismo mágico. Algo bem leve, como no livro O Filho de Mil Homens, do Valter Hugo, onde o único elemento é a galinha gigante, mas ainda sim temos videntes, pessoas conversando com ratos, entre outras, provando que não tem como fugir do sangue latino por mais brutal que o livro possa ser.
Por fim, falta falar do projeto gráfico. A letra é pequena, o livro é grande, tudo isso para não deixá-lo maior do que já é (na versão espanhola ele tem 1200 páginas). A capa é linda, mas, diferente dos outros do chileno, a lombada não completa a arte com a parte de trás, e sim tem uma tira branca, que eu não entendi o porquê. Enfim, chega de escrever, se você não entendeu o recado, eu vou botá-lo aqui novamente: leia 2666, isso é tudo que eu tenho para falar.
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