AUTOR: David Foster Wallace
PUBLICAÇÃO ORIGINAL: 2009
ANO DA EDIÇÃO: 2012
EDITORA: Companhia das Letras
PÁGINAS: 312
*Exemplar cedido pela editora.
A obra em questão foi apresentada pelos tradutores como a forma de adentrar o mundo literário de um dos últimos grandes autores do mundo, David Foster Wallace. O critério foi pegar os textos mais fáceis de sua não ficção, sem perder o charme característico do estilo Wallaciano, e dar chance ao povo que ficou intimidado com o primeiro livro dele lançado aqui, “Breves entrevistas com homens hediondos”, ou para quem está interessado em comprar “Graça Infinita” mas quer ter um gostinho antes para ver se realmente vale dar 100 reais naquele calhamaço (lindo), ou até mesmo para você, pacato cidadão, que nunca nem ouviu falar de Foster Wallace e agora está aí na sua cadeira doido para saber o que tem nesse livro.
Vou separar a obra em três categorias: a primeira parte será referente às experiências antropológicas, compostas pelos textos “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”, “Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer” (também chamado de “Texto do navio”), e “Pense na lagosta”. A segunda parte serão os discursos, composta por “Alguns comentários sobre a graça de Kafka dos quais não se omitiu o bastante” e “Isto é água”. A terceira parte fecha com a crônica esportiva “Federer como experiência religiosa”.
Os textos antropológicos são o que estão mais ligados ao lado jornalístico do livro em si, e revelam o charme do autor nessa coletânea de não ficção: o fato de Wallace não ser jornalista. O sentimento é que ele não está te enganando (além do fato dele descer a lenha naquilo que acha errado) e sim se sentindo muito mais livre para escrever o texto da forma mais heterodoxa possível. “Ficando longe...” abre o livro e conta sobre a semana em que Wallace foi a uma feira em Illinois. Aqui surgem várias reflexões e a estrutura em diário, com data e hora, traz muitos detalhes ao texto. a estrutura em diário (com data e hora) fez o trabalho detalhadamente botando muita reflexão dentro do texto.
Wallace já havia morado em Illinois, mas nunca tinha ido à tal feira. Seu sarcasmo já ataca analisando os detalhes na primeira ida, como, por exemplo, quando vê que a grama do espaço não é natural e diz: “Sólido jornalismo investigativo de cócoras revela se tratar na verdade de grama sintética”. Antes disso, as descrições sobre o trajeto de carro trazem reflexões importantes sobre o sentimento que o lugar passa para Foster, que vai ser cada vez mais importante para entender os interioranos ao longo do texto.
Não satisfeito com esse forte contraste entre os gostos e características interioranos com os dele, um rapaz da costa leste (leia-se Nova York), Wallace ainda traz uma garota para andar com ele pela feira, chamada apenas de Acompanhante Nativa, que também tem gostos interioranos e mostra de forma mais íntima a diferença entre Wallace e essa esfera. O nosso intrépido escritor passa por todas as atrações, falando de brinquedos de quase-morte, comidas extremamente gordurosas a ponto de dar nojo, eventos patrocinados por grandes empresas (o Mc Donalds aparece em todo o lugar), uma bizarra competição de boxe entre garotos de 10 anos, reflexões engraçadíssimas sobre todos os tipos de frequentadores (com uma posição claramente pedante), e o conflito individual de estar levando a julgamento pessoas que, mesmo morando perto, tem costumes extremamente diferentes.
O próximo texto é uma versão com esteróides do primeiro “estudo antropológico” de Wallace. O “Texto do navio” já começa nervoso com um resumo da loucura que foi o passeio de cruzeiro luxuoso. Aqui ele segue o mesmo esquema de antes: vai lá, fica uns dias de bobeira e depois conta para gente como foi. Se Foster já pega pesado com uma feirinha de Illinois, no texto do navio parece que o seu objetivo é demolir a vontade de qualquer um de fazer um cruzeiro algum dia.
Esse é para mim o melhor texto do livro e por isso não vou falar muito dele, deixar vocês com um pouco de curiosidade faz bem também. Wallace embarca e o panfleto do cruzeiro já deixa bem claro seu suposto objetivo: o passageiro não vai fazer NADA nessa viagem. Vai ser tão bem cuidado que só precisará relaxar o tempo todo. Wallace destrói esse conceito por todas as perspectivas possíveis, incluindo aí uma boa análise sobre o perfil dos passageiros que vivem embarcando nos cruzeiros luxuosos. Não à toa Pellizzari falou em entrevistas sobre a extrema importância da boa tradução desse texto, pois ele converte qualquer um em fã de David Foster Wallace em uma lida.
O último ensaio antropológico acaba se transformando num ensaio filosófico com uma das discussões das mais cabreiras: contratado por uma revista de culinária, Foster vai a um festival de lagostas no Maine e começa seu relato como os outros, falando do local, do que viu na feira, como a maior panela de fazer lagostas e a péssima distribuição de comida, até cair num ponto inevitável: o quão cruel é você jogar um animal vivo dentro de uma panela fervente apenas para ter uma experiência gustativa?
Alguns pontos levantados por Wallace: hoje em dia, todos sabemos que poderíamos viver sem matar nenhum animal. Consequentemente, você não está matando animais para sobreviver, e sim para você comer algo que você gosta. Você está trocando uma vida por um almoço daora. É engraçado ver como o próprio Foster fica preocupado com esses argumentos, porque ele mesmo não consegue achar uma solução justificável para ele continuar comendo bichos mortos, já que ele não é um vegano (o que torna essa reflexão ainda mais interessante, já que não vem em forma de critica “panfletária” e sim de reflexão honesta). Da minha parte, sou meio alinhado com o pensamento do chef brasileiro Alex Atala, apresentado maravilhosamente pela série documental da Netflix Chef’s Table (recomendo para caralho). Atala diz que grande parte do problema é que nós perdemos o contato com a morte dos animais, e por isso essas coisas nos chocam muito hoje em dia. O ponto é sabermos que em todo prato existe morte, e que devemos esse fato como a coisa extremamente que é. Mas gostaria muito de saber a opinião de vocês sobre o assunto.
Entrando nos discursos, ele muda algumas características da escrita, por motivos meio óbvios. Falando com uma plateia, Foster fica menos sarcástico e mais direto, por isso esses são os textos com menos páginas. “Isto é água” não tem nenhuma nota, diferente dos outros textos, e em “Kafka” tem, mas poucas comparadas com o resto do livro. Vamos a eles então.
“Alguns comentários sobre a graça de Kafka dos quais não se omitiu o bastante” começa de uma reclamação de Foster como professor: os alunos não entendem a parte cômica de Franz Kafka. Como exemplo dessa graça, Foster cita este conto do austríaco:
“puxa”, disse o rato, “o mundo fica menor a cada dia. No início era tão grande que me dava medo, eu vivia correndo sem parar, e fiquei contente quando consegui avistar muros distantes à esquerda e à direita, mas esses muros compridos se estreitaram tão rápido que já estou na última sala, e ali no canto está a ratoeira na qual acabarei pisando”. “É só você mudar de direção”, disse o gato antes de comê-lo.
Wallace tenta compreender por que as pessoas não conseguem ver a graça de Kafka analisando a obra do mestre do inconsciente, o formato do conto e a forma que a comédia é feita nos Estados Unidos, comparando séries de TV, stand-ups com trocadilhos de linguagem e o estilo de humor de caras como Philip Roth e Woody Allen. Wallace vai caminhando por esse discurso também tentando entender como exatamente funciona a graça de Kafka, mesmo sabendo que a pior coisa para um piadista é ter que explicar a piada que contou.
“Isto é água”, o segundo discurso, foi o meu primeiro contato com Foster Wallace, através do canal da Tati Feltrin, e foi emocionante lê-lo pela primeira vez. Ele trata de algo simples: verdades nas quais estamos tão imersas que nem conseguimos vê-las. Esse discurso de paraninfo feito para os formandos da Kenyon College em 2005 fala sobre o modo como o ser humano pensa e sobre as escolhas que somos obrigados a fazer. Entre as pérolas deste discurso, cito principalmente a reflexão sobre o que veneramos na vida, e como aquilo que veneramos sempre vai se voltar contra nós um dia. Recomendo muito ver o vídeo para ficar excitadíssimo por mais coisas desse gênio.
O último texto do livro é a crônica esportiva “Federer como experiência religiosa”, que, em questão de estilo, mescla ambos os jeitos anteriores. O texto parte de uma das paixões de Wallace, o tênis. Ele chegou a jogar profissionalmente como Junior, mas percebeu que não era tão bom quanto precisava ser e largou a vida de tenista. Existe um ensaio que ele fala sobre isso, mas infelizmente não está aqui.
O texto fala basicamente sobre como o senhor Roger Federer andava revolucionando o mundo do esporte das raquetes por mostrar que há espaço para um tipo de jogo diferente do power-baseline, estilo que a maioria dos profissionais assume para se jogar tênis. Também é sobre como Federer é assombroso como jogador, fazendo coisas aparentemente absurdas dentro das quadras, rendendo o que Wallace chama como “momento Federer”, que é quando o espectador fica de boca aberta e deixa algo que está na sua mão derramar no chão sem perceber. Passeando rapidamente, Wallace também discute um pouco sobre a história do tênis e do torneio em que ele vai ver um jogo dos dois grandes, Federer e Nadal, o torneio Wimbledon.
O ensaio tem uma linguagem mais puxada para quem entende de tênis, mas eu não achei difícil de entender, principalmente se você abstrai o nome das batidas e racionaliza que é simplesmente um tipo de porrada na bolinha. Wallace descreve lindamente vários momentos do esporte, principalmente a tal partida principal em que esse ensaio está centrado. Mas, para mim, a principal beleza desse artigo é a filosofia da estética da cinética que Wallace aborda em algumas páginas, basicamente tentando entender por que somos tão apaixonados por ver esportes e praticá-los, pelo menos grande parte da população. A conclusão que ele chega é maravilhosa e deixo para vocês descobrirem quando lerem.
O projeto gráfico do livro é sóbrio por dentro e bem diferente na capa. Por dentro, padrão companhia de sempre, prefácio do Galera já mencionado no começo desse texto, maravilhoso por sinal, coisa e tal. A capa é que chama atenção, porque parece uma colagem muito louca, com papéis com linhas horizontais e verticais, líderes de torcida com os rostos rabiscados, e a fonte do título diferente em cada palavra. Muito chamativa, mas, se for para fazer mais pessoas pegarem esse livro maravilhoso, eu apoio.