
Autora: Lina Meruane
Editora: Cosac Naify
Ano: 2014
Páginas: 192
Logo nas primeiras DUAS páginas a autora já arrebata o leitor com uma escrita sensacional, fazendo com que você sinta toda a agonia da personagem que se vê sozinha, na escuridão de um quarto de casal, procurando por sua seringa de insulina enquanto, na sala, uma festa barulhenta acontece, e seus olhos novamente sangram por dentro ocasionando algo semelhante a fogos de artifício atravessando sua cabeça. Sim, amigos, já começamos assim. Fiquei atordoada.
❝Já não haveria recomendações impossíveis. Que eu parasse de fumar, primeiro, e segundo que não prendesse a respiração, que não tossisse, que de jeito nenhum levantasse pacotes, caixas, malas. Que jamais me inclinasse nem me jogasse na água de cabeça. Proibidos os arroubos carnais, porque até mesmo num beijo apaixonado as veias podiam se romper. Eram frágeis essas veias que tinham brotado da retina e se esticado e se enroscado na espessura do vítreo. Era preciso observar o crescimento dessa trepadeira de capilares e vasos, vigiar dia a dia sua expansão milimétrica. Isso era tudo o que podia ser feito: espreitar o movimento sinuoso dessa trama venosa que avançava para o centro do meu olho. Isso é tudo e é bastante, sentenciava o oftalmologista, isso, é isso, repetia, desviando suas pupilas para meu histórico clínico, que se transformara num calhamaço, num manuscrito de mil páginas embutidas numa pasta grossa.❞
O QUE É A ESCRITA DESSA MULHER??? É como se Lina estivesse conversando com a gente, como se fosse um relato, e, vez ou outra, ela interrompesse e direcionasse seu discurso exclusivamente a seu amado Ignacio, como se ele também estivesse lendo e tentando descobrir de fato tudo que ela passou e pensou nesse período sombrio. Você sente a carga emocional em cada palavrinha e é atingido em cheio. Alguns momentos são como um soco na cara, já outros são tão suaves a ponto de te fazer sorrir enquanto lê.
Outra diferença é que, assim como nos livros do Saramago, não vamos encontrar travessões marcando inícios de diálogos nessa obra. Para isso temos pontos e vírgulas. Nada de interrupções com a Dona Meruane. Eu nunca tinha lido algo desse jeito e confesso que tinha um certo receio. Não sabia que ela utilizava desse recurso e fui pega de surpresa, mas deu tudo certo e não ocorreram confusões. Outro ponto é que ela não demarca os parágrafos e a narrativa segue ininterrupta até o capítulo seguinte, mas não se preocupem, os capítulos são bem curtinhos não passando de três pequenas páginas.
Apesar da personagem principal estar perdendo a visão, conseguindo enxergar apenas contrastes, ela descreve BRILHANTEMENTE as paisagens da cidades por onde passa. Começamos em Manhattan e passamos também por Santiago, quando Lucina vai visitar sua família revisitando complicadas situações. A descrição ocorre muitas vezes por lembranças (o que ela chama de olhos da memória) e vão até onde a imaginação dela se permite naquele momento. Exatamente a mesma experiência que nós leitores temos quando lemos uma descrição e automaticamente pintamos aquilo na nossa mente.
Sendo assim, o livro mostra não só as milhares de complicações no dia a dia de Lina, mas também nos tropeços em seus relacionamentos. Seja com a mãe, o irmão mais velho, amigos e até mesmo Ignacio. Há sempre uma distanciação e isso fica ainda mais evidente quando ela passa um mês "convivendo" com seus pais no Chile, que são ora ausentes demais ora sufocantes demais.
São 192 páginas que passam voando, mas que te deixarão marcas. Você lê e sente de tudo, menos a passagem dos números a cada folha. Folhas essas que a Cosac deu um toque especial: conforme a visão de Lina vai escurecendo, nossas páginas também vão se transformando, de branco até um cinza. É impossível permanecer indiferente na leitura desse livro.
O que eu notei, e que talvez você também tenha notado caso tenha lido a ficha técnica ali em cima, é que a autora utilizou o seu próprio nome na personagem. Assim como a profissão. E a lista de semelhanças continua, isso porque o livro é uma autoficção: quando o autor utiliza elementos da sua vida real em sua obra ficcional. Na vida real, Lina também enfrentou problemas de visão. Dei uma olhada em algumas entrevistas e, a princípio, Sangue no Olho seria mais como algo autobiográfico, mas que acabou indo para outro caminho, tornando-se um romance. Infelizmente, essa é a única obra da autora lançada no Brasil (VACILO), mas eu estou me coçando para ler mais coisas dela e talvez me arrisque com as originais... Não posso deixá-la passar assim, gente!!!
Comecei a escrever esse post super empolgada, afinal de contas, com vinte páginas de leitura eu já havia anotado vários pontos que gostaria de falar por aqui. Finalizei o texto, li, reli e não sinto que fiz jus a obra, o que me deixa meio mal porque ela realmente merecia. Então, caso eu ainda não tenha conseguido te convencer de que você realmente deve ler Sangue no Olho, aqui fica mais um apelo: PELO AMOR DA SANTA AMAZON, ME AJUDA A TE AJUDAR. FAZ ESSE FAVORZINHO AÍ PRA GENTE!!!